Sobre Principium
Do meu corpo apodrecido irão crescer flores e eu estarei nelas e isso é a eternidade.
Edvard Munch
O Conceito.
Vida e morte. Consciência e imaterialidade. Quantos mundos existirão dentro de mim, povoados por células que interagem entre si, sem que eu tenha consciência ou influência nessa interacção? Faço eu parte de outros tantos cosmos?
As imagens de manuais de medicina sempre tiveram sobre mim um efeito de arrepio. Talvez pela natural tendência humana de empaticamente projectar sobre nós próprios o que vemos nos outros. A observação de fracturas, lesões, condições anómalas extremas exerceu um efeito mais amplo: o desconforto relativo ao meu corpo, ao que se passa no seu interior, aos seus órgãos.
O elogio consumista da juventude, a obsessão com o corpo – artificialmente – saudável e esbelto, o desdém pela velhice e a repugnância pela decadência, a associação de imagens relacionadas com a morte, a mutilação ou as alterações do corpo ao terror literário ou cinematográfico, em nada contribuem para alterar ou mesmo melhorar esse relacionamento. Este mundo estranho, quase repugnante, que, afinal, sou eu.
A experiência directa veio alterar esta minha percepção: fiz um eco-cardiograma e fui confrontado com imagens, captadas em tempo real, do meu próprio coração. Subitamente estava perante algo que, sendo parte de mim, revelava ter vida própria, e a experiência atingiu um patamar marcante quando senti efectivamente uma ligação de afectividade extrema por aquele órgão que, não sendo eu, era (e é, felizmente) parte de mim, como um bom amigo que desconhecera até então.
A segunda experiência passou pela minha mãe e por ter sido necessário efectuar a amputação da sua perna esquerda. Enquanto estamos vivos, partes do nosso corpo que são removidas por procedimentos médicos são classificadas como lixo hospitalar, recentemente reclassificado como resíduos hospitalares de risco biológico, constituindo o grupo III nos resíduos hospitalares, e resíduos hospitalares específicos, constituindo o grupo IV, onde se incluem peças anatómicas identificáveis, fetos e placentas, (…) cadáveres de animais de experiência laboratorial; materiais cortantes e perfurantes: agulhas, catéteres e todo o material invasivo; produtos químicos e fármacos rejeitados, (…) citostáticos e todo o material utilizado na sua manipulação e administração.
Depois da morte, o que de nós sobra é reverenciado e alvo dos maiores cuidados e rituais. Esta contradição cultural fez-me desejar enfrentar o tal efeito de arrepio e colocar o relacionamento que tenho (temos?) com o interior do corpo, saudável ou enfermo, num plano distinto, num plano em que vida e morte apareçam com a sua naturalidade, e não como um medo, uma repulsa cultural, inculcada por géneros e media.
Ao utilizar imagens de figuras humanas revelando músculos, ossos, órgãos internos, mas retirando-lhes a componente de apreciação meramente científica ou médica, ao colocá-las em cenários, atribuindo-lhes acções e posturas, o resultado é uma exposição de fragilidades íntimas, de poder e magia, de natureza e de sobrenatural, uma visão do interior menos revelável da espécie humana, para além da própria nudez da criação, em que da (de)composição da carne surge terreno fértil para o nascimento de novos seres, de flora e fauna, num sentido de verdadeira vida eterna, de vida pela vida.
Principium mostra assim ligações entre espécies, entre átomos que se cruzam há milhões de anos, partículas que resultam da decomposição e recomposição de toda a vida na Terra, do eterno ciclo de vida e morte. A sedução das representações simbólicas, herméticas, repletas de mistério para os leigos, desde a harmonia das mandalas aos elementos da alquimia, passando pela geometria e representações de sólidos euclidianos, até desenhos oriundos de compêndios médicos e de ciências biológicas desde o século XVI até ao século XIX, está presente em todas as peças, e consuma a intenção de relacionar os aspectos mais carnais e materiais com os mais oníricos, metafísicos ou até mesmo sobrenaturais, dos diversos planos de existência.
Esta ligação cósmica não é nova nem característica de um certo espírito “new age”. É, pelo contrário, um conceito antigo. Na cabala judaica refere-se o “Adam Kadmon”, no hebraico אדמ קדמון – do aramaico – Homem da Terra, que representa o Homem Arquétipo, o Homem Primordial , comparável ao Antropos do gnosticismo e do maniqueísmo. Ele é a síntese da árvore da vida, que emana de Ain Soph. Vêmo-lo nesta imagem de Athanisius Kircher, como um jovem, o centro do cosmos – encimado pela energia divina – mas cujo corpo está limitado aos círculos de existência interiores, estando-lhe vedados os 3 círculos exteriores.
A outro nível encontramos também a relação entre as diferentes partes do corpo e a astrologia, e esta ilustração Homem do Zodíaco, do “Le Calendrier du Berger” é um bom exemplo. A correspondência com o zodíaco era feita a partir da cabeça, com Carneiro, até aos pés, com Peixes, estabelecendo uma relação entre o microcosmos com o megacosmos, como era designado na altura.
A relação entre zodíaco e corpo comandava as melhores alturas do ano para levar a cabo intervenções médicas nas zonas do corpo afectadas, e esta ilustração europeia do Homem Dador de Sangue de Hans von Gersdorff na obra Feldtbüch der Wundartzney, de 1528, mostra alguns dos pontos principais de acção. A extracção de sangue era feita por venesecção (seccionamento de uma veia) ou pela aplicação de sanguessugas.
A prática de lancetamento e extração de sangue, ou aplicação de cúpulas de sucção, como forma de afectar determinados órgãos baseada num postulado de relação entre órgãos internos e pontos à superfície da pele, é ainda actualmente prática corrente entre muçulmanos, e encontram-se facilmente vários vídeos no YouTube que mostram o seu procedimento.
É plausível que o mesmo princípio esteja na origem da acupunctura na China, dado que o princípio greco-árabe de lancetamento era conhecido no Oriente, e fragmentos de obras árabes de referência do século X foram traduzidas e publicadas durante a dinastia Yuan, incluindo algum texto em árabe.
O homem cósmico chega aos nossos dias dissecado (literalmente) pela ciência. Graças a ela conhecemos a nossa composição química, e estabelecemos mais uma ligação ao universo elementar microscópico através dos elementos que constituem o nosso corpo – e cuja representação atómica e molecular nos remete – uma vez mais – para o estabelecimento de relações entre microcosmos e macrocosmos.
Principium é também uma forma de prestar homenagem aos grandes artistas pioneiros nas ilustrações das ciências médicas, como Juan Valverde de Amusco (séc. XIV) ou Andreas Vesalius, passando por Benjamin Waterhouse Hawkins, Nicolas Henri Jacob, Jean-Baptiste Marc Bourgery, Odoardo Fialetti, Jan Wandelaar, John Bell, Julius Casserius até George Henry Ford e Joseph Maclise (séx. XIX), entre outros.
É interessante ainda notar a existência de perfis distintos: existiram artistas que levavam a cabo dissecações para aprofundar a sua técnica e o conhecimento do corpo humano (como Leonardo da Vinci (1452-1519), Albrecht Duerer (1471-1528), Michelangelo (1475-1564) ou Rafael (1483-1521)) e médicos/cirurgiões que desenhavam, exactamente pelos mesmos motivos (como Robert Hooke (1635-1703), Antonio Scarpa (1747-1832), John Bell (1763-1820) e Sir Charles Bell (1774-1842)) embora com notáveis diferenças de abordagem e resultado (à esquerda um estudo de Leonardo e à direita de Sir Charles Bell):
Mas existiram ainda equipas mistas de artistas/médicos, como Andreas Vesalius (1514-1564) e Jan Stephan van Calcar (1499 – 1546), Giulio Casseri (1552-1616) e Odoardo Fialetti (1573 – 1638), Bernhard Siegfried Albinus (1697-1770) e Jan Wanderlaar (1690-1759) ou William Hunter (1718-1783) e Jan van Riemsdyk (1750-1788).
As peças.
Principium é uma série de impressões digitais de alta resolução, em grande formato (100cm x 100cm), desenvolvidas através de manipulação digital de fotos da minha autoria, e ilustrações de época.
Todas as peças (arte digital sobre tela, 1m x 1m) têm o preço de €250.
As peças podem ser vistas aqui.