JUSTAPOSIÇÃO

Por pedroveiga em

A obra JUSTAPOSIÇÃO é o resultado de um trabalho artivista que aborda a desigualdade de género no desporto, e foi desenvolvido por encomenda para a exposição Mulheres no Desporto: Pioneirismo, Desafios, Inspiração, Igualdade, no Museu Nacional do Desporto.

A sobreposição de imagens de homens e mulheres fotografados no final do século XIX, e a naturalidade dos seus movimentos e corpos, são reinterpretadas através de um texto justaposto, evidenciando características ou significados até então ocultos – ou, eventualmente, surreais.

A arte generativa, género no qual esta obra se insere, consiste na exploração estética de um sistema autónomo, programado e parametrizado pelo seu autor, mas cujos resultados ou combinações são potencialmente infinitos e distintos, gerando novas imagens a cada execução. Neste tipo de sistemas combina-se – justapõe-se – caos e ordem: a seleção, posição e coloração das imagens é decidida pelo sistema, com alguns parâmetros aleatórios (caos) enquanto o fluxo do texto é pré-definido e obedece à sua construção original (ordem).

Do ponto de vista conceptual, podemos identificar quatro pilares fundamentais:

  1. a igualdade intrínseca entre todos os seres humanos, manifestada através dos 11 elementos químicos mais comuns na nossa constituição (oxigénio, hidrogénio, azoto, carbono, cálcio, fósforo, enxofre, potássio, sódio, cloro e magnésio);
  2. um conjunto de informação estatística relativa ao tema, oriunda de fontes credíveis e reputadas;
  3. o trabalho cronofotográfico pioneiro de Eadweard Muybridge, realizado entre 1878 e 1886 sobre a locomoção animal, e onde figuram modelos humanos femininos a par dos masculinos;
  4. um texto original de cariz poético, em 11 atos, que representam diferentes personas, individuais e coletivas, cada uma delas expressando-se sobre o tema através de jogos de palavras em torno de termos como transposição, desigualdade ou superação, entre outros.

O nome da obra é, também ele, um pequeno jogo com a palavra justaposição, já que a obra assenta na sobreposição de camadas semânticas complementares, construindo dessa forma um conceito de justa posição sobre a (des)igualdade de género no desporto.

A obra envolveu um processo de investigação complexo e quase divergente, sendo que os três primeiros pilares se apresentaram como inspiração possível desde os momentos iniciais. Grande parte do acervo fotográfico de Eadweard Muybridge está atualmente no domínio público, e acessível através de Wikimedia Commons, possibilitando a criação animações com as sequências mais ricas e bem documentadas. Existem, inclusivamente, vários GIFs animados que são disso exemplo.

Por outro lado, a informação estatística sobre o tema da desigualdade no desporto é abundante, e por isso impôs-se um processo de seleção, para evitar a irrelevância pelo excesso e pela habituação.

Contudo, todos estes elementos apresentavam-se desligados entre si, e não foi possível identificar nenhum outro elemento externo que funcionasse como unificador. Daqui nasceu, então, o propósito de criar um texto original que servisse aquele desígnio. Curiosamente, o texto foi revisto várias vezes por influência pela própria obra em que se integrou, já que a cada teste, ao observar a combinação com as imagens em movimento, frequentemente revelava-se a necessidade de acertos, quer na divisão dos atos, quer na métrica das frases, ou ainda na própria construção e escolha dos termos.

Oxigénio.
Somos dualidade coreografada em tempo e espaço,
fluidez de órbitas atómicas,
universos nossos, pulsantes de eletricidade,
veias, ossos, anatómica singularidade.
Somos diferentes em vida,
vento ou vaga: não há absoluto.
Iguais na morte e no fruto.
Hidrogénio,
o enigma da identidade
manobra a pele e a razão,
em cada músculo e tendão
até então desconhecidos.
Corre o espírito pelas veias.
Temos braços para voar, pernas para ir.
Tudo é superação e sacrifício,
de cada fim a cada início.
Persistir até ao âmago,
até ao zénite.
Azoto.
Transposição.
Não são quotas que mudam oportunidades,
és tu e a tua posição.
Quantos nomes de jogadoras de futebol conheces?
A quantas provas femininas assististe?
Se todo o carinho é dado a um só filho...
esperas que o outro prospere? É triste
Trans-posição.
Carbono.
De calcinada e proibida a desigual.
Nor-mal?
Se tenho músculos, sou feia?
Se combato, sou agressiva?
E se é essa a tua ideia...
é tua a invectiva, e minha a superação.
Cálcio.
Resistência.
Pede mais aos jornais e às redes sociais.
Escreve para as televisões.
A dignidade está acima dos milhões
e eu estou acima da adversidade.
Desafio a gravidade e o preconceito.
A igual tudo é dado. A mim? Tudo é preceito.
A vitória é mais do que um ato de vontade.
A superação é o respeito.
Des-igualdade.
Respiro e ensejo.
Des-ejo igualdade.
Anseio. Ardo. Arde!
Fósforo.
Eterna chama anímica,
visão do que ainda não é, mas que se sente.
Transmutação alquímica da dor em ardor,
da inspiração em forma.
Trans-forma. Explode!
Enxofre.
Ser humano. Sou mulher. Sou suor. Sou vulcão.
Super-ação.
Equipa e colaboração.
Coração.
Mulher. Atleta. Ser. Competição.
Chama, simetria e paixão.
Rituais e regras,
ritmos, treinos e rondas.
Nunca o ócio.
Potássio.
O meu sangue é igual ao teu,
o meu suor tem o mesmo sabor
e as lágrimas igual textura.
Sódio.
Vontade pura.
Cloro.
De sal a sol, de céu a céu,
sou constante hermética, atrator simbólico,
magnésio
e alma.
Sou.

Do ponto de vista técnico, a obra foi integralmente programada em Processing 4.0, utilizando Adobe Premiere para pré e pós-produção. A obra exposta resulta de uma captura para vídeo, em tempo real, da execução do sistema (runtime).